Neutralidade Tecnológica

Por Marcos Beccari

[ilustração de Guilherme Henrique]

Quando pensamos em ética no design, uma hora ou outra cairemos na questão sobre uma possível “neutralidade tecnológica”. Ou seja, um revólver não é mal em si mesmo, isso depende do uso que determinada pessoa faz dele. A objeção básica contra isso é dizer que ninguém poderia ser morto por revólveres antes de terem inventado o revólver.

De quem é a culpa afinal: do revólver, do cara que usa o revólver ou do designer que projetou o revólver? Essa pergunta é tendenciosa. Eu nunca vi, por exemplo, uma bomba de hidrogênio na minha frente. Se eu me deparasse com uma, poderia acioná-la acidentalmente em um ato cego, uma escolha cujos parâmetros envolvidos eu desconheço inicialmente. Ora, a culpa não seria então do indivíduo que projetou essa bomba? Eu não teria tanta certeza.

A armadilha está na tentativa de encontrar um culpado. Quem é o culpado por um terremoto ou um tornado? Obviamente uma bomba, diferente do terremoto, foi criada pelo homem. Mas o homem em si é mais parecido com um terremoto: ele nunca tem como prever e controlar TODAS as consequências de suas ações. Mesmo assim, ele age – sabendo que qualquer escolha pode dar certo como também pode dar muito errado.

A escolha é um tipo de ação trágica, cujos critérios/parâmetros/coordenadas são redefinidos a cada nova escolha. É assim que eu entendo um projeto de design: um processo interminável no qual novas escolhas se abrem na medida em que se escolhe. Claro que optar por um determinado caminho significa encerrar mil outros caminhos possíveis, mas permanecer na inércia de não tomar decisões significa não projetar, não fazer design.

Neste sentido, dizer que a tecnologia é neutra é o mesmo que dizer que existe uma “moral da tecnologia” (o revólver é naturalmente mau): em ambos os casos, parte-se da falsa premissa de que a tecnologia está separada de nossas escolhas. No âmbito do design, pelo menos, compreendo a tecnologia como algo indissociável da afirmação de uma escolha fundamental sem a qual nenhum julgamento moral seria possível: a escolha de escolher.

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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De quem é a culpa afinal: do revólver, do cara que usa o revólver ou do designer que projetou o revólver? Essa pergunta é tendenciosa. Eu nunca vi, por exemplo, uma bomba de hidrogênio na minha frente. Se eu me deparasse com uma, poderia acioná-la acidentalmente em um ato cego, uma escolha cujos parâmetros envolvidos eu desconheço inicialmente. Ora, a culpa não seria então do indivíduo que projetou essa bomba? Eu não teria tanta certeza.

A armadilha está na tentativa de encontrar um culpado. Quem é o culpado por um terremoto ou um tornado? Obviamente uma bomba, diferente do terremoto, foi criada pelo homem. Mas o homem em si é mais parecido com um terremoto: ele nunca tem como prever e controlar TODAS as consequências de suas ações. Mesmo assim, ele age – sabendo que qualquer escolha pode dar certo como também pode dar muito errado.

A escolha é um tipo de ação trágica, cujos critérios/parâmetros/coordenadas são redefinidos a cada nova escolha. É assim que eu entendo um projeto de design: um processo interminável no qual novas escolhas se abrem na medida em que se escolhe. Claro que optar por um determinado caminho significa encerrar mil outros caminhos possíveis, mas permanecer na inércia de não tomar decisões significa não projetar, não fazer design.

Neste sentido, dizer que a tecnologia é neutra é o mesmo que dizer que existe uma “moral da tecnologia” (o revólver é naturalmente mau): em ambos os casos, parte-se da falsa premissa de que a tecnologia está separada de nossas escolhas. No âmbito do design, pelo menos, compreendo a tecnologia como algo indissociável da afirmação de uma escolha fundamental sem a qual nenhum julgamento moral seria possível: a escolha de escolher.

Marcos Beccari

Marcos Beccari

Doutorando em Educação na USP, designer gráfico e mestre em Design pela UFPR. Professor substituto no curso de Bacharelado em Design Gráfico na UFPR. Interessa-se por Filosofia, Psicologia e Comunicação, o que o levou a pesquisar sobre Filosofia do Design e a encarar o design como articulação simbólica na mediação ficcional que organiza o real. Além de atuar como professor e pesquisador, coordena o blog Filosofia do Design, integra o podcast AntiCast, é membro do projeto "Cinema e Educação: tela, espelho e janela" (USP-Fapesp) e colabora com outros blogs/revistas de design e comunicação.

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